Talvez seja o álcool apenas a forma que conseguimos apreender a mística da cachaça cultural
Fotos por Gastrofelicidade
No geral, ela é tratada por: a cachaça, a pinga, a branquinha, a aguardente. No específico, as damas nomeiam inúmeros exemplares; senhoras, marquesas, princesas, rainhas, santas e nomes femininos tantos. Nos rótulos, rostos ou corpos estampados enaltecem a mulher (homenagem que, às vezes, excede o limite até do mal gosto). É assim. O império delas vai do nome ao rótulo. Mas, normalmente, esse é o limite concedido à intimidade feminina com o universo da cachaça.
Para além dessas bem demarcadas linhas ergueu-se ao longo da nossa história com a cachaça uma imagem popular vinculada só ao masculino. Um conhecimento exclusivo dos homens, um labor duro, executado por homens, uma bebida saboreada por homens, sobretudo, um vasto domínio no qual o poder de decisão é do homem. O feminino nesse universo? Só adorno. Lugar de pertencimento, a prateleira. Nesse ideário machista a pinga se transforma, muitas vezes, na tão desejada mulher que, enfim, poderá ser tomada nas mãos para sorver dela todo o prazer, quantas e quantas vezes quiser, sem pudores, limites ou mácula moral. Quando satisfeito, de volta à prateleira para ficar em exposição.
Para ser menos duro, não é só a conotação de objeto que tradicionalmente permeia as mulheres na pinga. Há belas, verdadeiras e profundas histórias de respeito e homenagens à avós, mães, esposas, filhas. São mulheres fundamentais que orbitam o universo centrado nos homens que fazem a cachaça. Ainda que bem-intencionados, inspirados pelas musas e apaixonados pela cachaça, a homenagem é, ou foi, uma honrosa concessão daquele que domina todos os espaços da cachaça em prol das mulheres que eles tanto admiram. O domínio ainda é do homem, à elas cabe a graça pelo que lhes foi cedido.
Esse lugar social e historicamente naturalizado da cachaça como bebida de macho pode estar ligado à extrema valorização do álcool em detrimento de toda a experiência sensorial que a cachaça nos oferece. Assim, quando nós assumimos como régua de aceitação social o nível de tolerância aos efeitos do álcool, a gente estabeleceu um jogo desigual, já que, fisiologicamente, nesse quesito, os homens apresentam diferenças em relação às mulheres e, por isso, sim, elas vão beber menos. Por conta desse culto ao álcool puro e simples, acredito, foi sendo paulatinamente delegado às mulheres um papel secundário, quando não acessório, na história da cachaça.
Até ontem era assim. No geral, elas não se achavam no direito de gostar da pinga, e quando gostavam tinham vergonha. Hoje, há mulheres brilhantes tomando frente dos negócios nos alambiques, outras magistralmente elaborando cachaças e, ainda, há aquelas que decifram como ninguém toda a sofisticação sensorial que a branquinha esconde. Elas, com toda a competência e habilidade, já formam uma frente que começa a desconstruir essa injusta e descabida imagem de uma cachaça sexista. Aos poucos elas vão ajudando despertar olhares para os valores sensoriais da nossa branquinha e transformando o álcool num mero coadjuvante da experiência-cachaça.
É nesse lento dissipar da névoa do preconceito, promovido pela entrada contundente das mulheres na cena, que começamos a enxergar outras faces da encantadora caninha. Essa lenta chacoalhada na paquidérmica instituição da tradição vai fazendo com que a gente vá largando o cômodo, naturalizado e pacífico entendimento de que o feminino no universo da cachaça é um conjunto de elementos, artificialmente atribuído a elas pela arrogante generosidade machista e vamos percebendo que o espírito que emana da pinga fala tanto à mulher quanto ao homem. Na verdade, enquanto as características primária mais evidentes como teor alcoólico, acidez, picância, conferem à cachaça características que entendemos como sendo próprias de um universo masculino, toda a sutileza das nuances aromáticas que vão despertar um excitante jogo de percepções sensoriais, foi solenemente ignorada por séculos em favor dessa ideia quase irracional de que ser cabra-macho bastava. Mas não basta.
O que num momento foi uma bebida franca, direta, sem rodeios, tem crescido aos nossos olhos e ganhando respeito como uma bebida de personalidade, muito mais sofisticada, que exige de nós mais que atributos físicos para suportar o tranco. Requer de nós, sensibilidade, atenção, paciência. Requer de nós rito. Rito para desfrutar a experiência. À medida que nossa branquinha dileta perde os fortes contornos da tradição patriarcal, vai recuperando a leveza de uma bebida, que chega despretensiosa, carregada de aromas e cores, disposta a, simplesmente, contagiar o ambiente com uma alegria singela e acaba nos arrebatando por sua profundidade e por seu poder de envolvimento.
A cachaça é assim, bebida de personalidade forte. Ela é que decide se, quando e para quem vai se revelar. Para sermos merecedores, temos que baixar a guarda, livramos das nossas certezas e deixarmos as mãos livres para receber seus presentes. Quem resolve entregar-se ao seu jogo de sedução vai encontra muito mais que o previsível prazer do álcool. Mas, é preciso paciência. É preciso desvendar mistérios que, a cada dose, ela lança com uma deliciosa sutileza carregada de malícia. Engana-se quem acha que já conhece seus mistérios. Não se domina a cachaça, ela é um espírito livre que buscou na natureza exuberante os mais inebriantes perfumes só para nos seduzir e surpreender. Foi ali, num longo namoro com as madeiras, que ela foi aprendendo a ser, ora doce, ora gentilmente ácida só para temperar nosso paladar e despertar uma emoção tão densa que quase conseguimos partir com uma faca. Foi observando por séculos as desventuras da humanidade, que ela foi se moldando para se tornar familiar e deixar-nos mais à vontade em suas redes de sensações.
Essa cachaça não quer ser do homem, bem como, não quer ser uma mulher. Ela não carrega nossos sentimentos mundanos. A pinga, que insistimos em chamar de nossa e pela qual nutrimos um carinho maternal é como os anjos, não tem sexo. Ela é livre, é selvagem. A gente é que, com sagaz engenhosidade, conseguiu aprisionar no álcool os ecos desse espírito que ronda nossas florestas e vales e, por força da prepotência humana, insistimos em rotular esse mero espectro aprendido como sendo de homem, de mulher, de família. Talvez esse esforço linguístico em domesticá-la seja alguma espécie de inveja que temos de sua liberdade e descomprometimento com os sentimentos humanos. Talvez essa mística indecifrável, por pura brejeirice, venha se escondendo na arrogância científica do homem. Ciência necessária, saudável, mas incapaz de elucidar o encantamento que a cachaça nos provoca. Porque o encantamento… Ah, esse é da ordem do sobrenatural.
Essa brincadeira de pega-pega, na qual a cachaça, com todo seu místico saber, faz de nós gato e sapato, nos deixa inebriados. São curtos lapsos de tempo em que podemos experimentar sensações completamente descoladas do nosso universo. Um momento em que temos a licença de deixar nossa materialidade humana e sermos leves, flutuar largando o peso das nossas certezas para trás para ganharmos a liberdade de simplesmente sentir e fluir, perseguindo pelos domínios do afeto esse espírito brincalhão que sopra suas intenções na cachaça. Toda essa brincadeira dura às vezes intensos segundos, mas o tempo deixa de ser referência, assim como deixam de ser referência os lugares históricos e sociais que o preconceito cristalizou. E quando voltamos à realidade aquelas certezas inabaláveis, monótonas e cinzas vão dando lugar às possibilidades, sempre novas, dinâmicas e fugazes. Meninas, obrigado pelo esforço de resgatarem da prisão das certezas o espírito livre da nossa branquinha dileta. À saúde de vocês…
Por Alfredo Luiz Miranda – Gastrofelicidade
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