Apreciar Cachaça é uma Ponte para esse Mundo

Degustar é um exercício de atenção para perceber o mundo que nos cerca.

Este é o mundo posto. Sempre medido e controlado por números grandes demais para nossa compreensão. Bilhões de pessoas. Bilhões… Demandas, carências, desejos numa escala bilionária, de dez dígitos. Aqui no Brasil somos mais de duas centenas de milhões. Milhões é mil, mil vezes. Se não damos conta de conhecer as poucas dezenas de pessoas que moram na nossa rua, imagina o volume de gente num mundo em que só 1 a cada 30 pessoas é brasileira.

Para dar conta de tanta gente o mundo foi ficando cada vez mais igual. Afinal, aprendemos que para ser produtivo tem que ser o mais fácil e igual possível. Isso dá agilidade, dá confiabilidade, da controlabilidade. E, de repente, aquele mundo enorme ficou resumido num “nosso mundo padrão”. Tudo em larga escala com a mesma cor, tamanho, gosto, cor, cheiro. Padrões, repetíveis. Descobrimos que repetir é o segredo para viver a vida sem sobressaltos. Repetimos costumes, repetimos estilos, repetimos comportamentos nos repetidos dias da semana, ao longo dos repetidos meses do ano.

Sem saber se causa ou efeito, ao longo dos séculos, à medida que fomos sendo vistos cada vez mais à distância, lá de cima, fomos nos tornamos uma espécie de massa uniforme com certa previsibilidade, ideal para projetar consumos indistintos. Ainda que seja apenas um dos pontos de vista (de cima) ele é dominante. Para ajudar, por décadas estamos sendo expostos à um conjunto de informações meticulosamente escolhidas para serem consumidas em horários e locais determinados. O, hoje decadente, jornal das 20h ainda ajuda muito a moldar comportamentos que facilitam o trabalho de tornar o mundo, ou pelo menos parte dele, um lugar mais habitável para nós seres humanos. É isso, o segredo para a sobrevivência do nosso mundo duro, árido, sem cor, muito igual é a pálida e sem graça é a larga escala.

Grande sim, padrão, às vezes

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Visto assim de cima, como no goolge maps é assustador, um mundo meio zumbi, eu sei. Mas essa falta de personalidade é o todo, não a arte. A gente, pessoa, é sim, um pouco zumbi, refém dessa condição, por assim dizer, industrial. E até sentimos certo prazer e alívio em não precisar de, literalmente, matar um leão por dia. Bom ir ao supermercado e encontrar bife cortado em bandejas, saber que o sacolão não abre só aos domingos. Dá conforto saber que amanhã tudo vai ser insuportavelmente igual, dos engarrafamentos ao jantar.

Mas, uma vez satisfeitas nossas condições elementares de sobrevivência, entramos num contínuo esforço para oscilar numa faixa de conforto. A partir daí buscamos naturalmente formas de experimentar o mundo nos detalhes que a rotina e o padrão não nos oferecem. Buscamos a arte. É o desejo de se descolar e encontrar um mundo muito particular, escondido no anonimato das multidões. É um movimento de descoberta da singularidade, daquilo que nos define como seres únicos. Há aqueles que vão busca-la do lado de fora imergindo em outras culturas, se oferecendo como o diferente e experimentando todos os estímulos que lhe são apresentados. Há, também, os que preferem encontrar suas particularidades de dentro para fora, experimentando comunhões místicas ou reflexões mundanas. Ainda existem aqueles que transitam despudoradamente entre todas essas oportunidades de se descobrirem únicos.

Uma ponte entre mundos

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É nessa busca por identidade que entra a cachaça. Não qualquer uma. Existem cachaças que foram criadas para serem cachaças do todo. Bebidas bem feitas, honestas, seguras, que apesar de estarem no rol das “bebidas quentes”, são frias, sem paixão, sem alma. Não há mal nenhum em bebê-las, mas não espere elas mais que a confirmação de que você é mais um na multidão.

Mas há as cachaças, as “outras” cachaças…. Verdadeira arte. Mimos feitos por quem já descobriu que existe um mundo mais colorido que caminha lado-a-lado como o todo-dia. Estas pessoas de sorriso e peito aberto entregam-se ao labor do fazer cachaça não para abastecer o mercado, mas para satisfazer almas carentes de afago. Eles conseguem imprimir naquele líquido, ora transparente, ora nos mais diversos tons de ouro (da palha ao mel), um certo olhar poético que revela outros mundos. Sim, a cachaça de alambique, feita com esmero e atenção, é uma espécie de portal místico.

Para que aquele líquido inerte e despretensioso tome forma e ganhe intenções de ponte é preciso encantar-se. A cachaça, para ser portal, carece daquela curiosidade infantil de quem descobre o mundo. Longe de ser uma questão de fé, é preciso acreditar nela sem barreiras nem receios, pois, a pinga não se entrega de graça, exige de nós esforço (e por que não exigiria? Ela é fruto de um empenho severo de muitas mãos e carrega a herança de batalhas, suor e vidas infringidas). Não é um exercício simples nem imediato. É um processo longo que requer certa dedicação, assiduidade, revisitações, degustações e principalmente atenção aos detalhes dos sentidos e aos estilhaços da memória. Aqueles pedacinhos pequeninhos de passado que passam sem serem notados frente ao turbilhão de informações novas à que somos expostos violentamente, vão ajudar no prazeroso processo de descobrir um mundo que está além do nosso mundo padrão.

Quanto mais envolvidos somos naqueles momentos de apreciação da cachaça, mais vamos largando as coisas desse mundo e descobrindo a riqueza dos detalhes. Os cheiros que exalam da taça passam a tomar corpo de aromas do passado ou de afetos; os sabores mais delicados vão encontrando caminhos na nossa língua e trazendo memórias deliciosas. Passamos a perceber que o mundo ao nosso redor não é tão igual, aliás que um universo dinâmico em completa espiral de mutação, rico, cheio de cores e particularidades. Deixamos para traz a sensação de que o mundo é uma enfadonha e diária repetição de eventos e nos entregamos aos prazeres do acaso, pois acatamos a certeza de que cada gole é o primeiro e o último, com novas impressões, novas emoções novas experiências.

Esse exercício de nos atentarmos aos detalhes mínimos que a cachaça nos presenteia proporciona uma renovada consciência da riqueza em que estamos imersos. Assim, nos tornamos mais sensíveis às nuances do quotidiano e vão se descortinando, a todo momento, universos únicos, singulares irrepetíveis. A experiência sensorial com a cachaça é completamente às avessas daquelas a que somos diariamente expostos. Ela nos permite a independência para tomar a decisão de experimentar mundos outros que não aquele que nos é confortavelmente imposto cotidianamente.

Que a pinga seja nossa companheira nas descobertas dos novos mundos.
À sua saúde…

Cachaça!

Por Alfredo Luiz Miranda – Gastrofelicidade
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