A pinga é uma bebida de esperas

Os tempos ganham significados particulares na gestação das cachaças

fotos por Gastrofelicidade

Cachaça, cachaça mesmo não é feita afobadamente. Não cabe pressa na sua natureza. Ela é bebida de esperas. Cachaça que respeita sua origem cultural não é produzida, é gestada. É uma longa jornada de planejamentos e desejos que começa antes mesmo dela “vir ao mundo”. É uma ideia que nasce de vozes múltiplas, de palpites extravagantes aqui, dicas preciosas dali, e, até, de algum desdém invejoso bem acolá, quase dobrando a esquina, mas que insiste em se fazer ouvir. Esse rico caldo de ideias vai parar numa “dorna-cuca” para ir fermentando. E, diferente de uma dorna de verdade, nesse caldeirão virtual vai sendo despejado todo tipo de estímulo. Vale tudo, amores, temores, ansiedade e luxúria. Despeito e rancor também temperam esse vinho que antecede a branquinha ideal. É um processo lento, tocado à experiências vividas e outras cobiçadas. Equilibrar afetos e ponderar sentimentos em busca daquela ideia perfeita de pinga pode levar semanas, anos, até que, enfim, a fermentação se complete, a calmaria se estabeleça, o calor se amaine.

Maravilha, agora é tempo de…. mais espera. Ainda ideia, uma Cachaça que carrega orgulhosamente o DNA da sua origem precisa dos prazos. Tem que esperar o calor certo. Emoção demais mistura ideias, emoção de menos, não comove. É no calor do tempo-certo que se destila o mosto o criativo. A sensatez é que fraciona essa pinga-ideia, separando a cabeça, cheia de força, pesos, arroubos; e a cauda, fraca de inspirações, esmorecida. Sobra, enfim, o que é do afeto, do coração. Surge, vibrante e cristalina a ideia original da mais perfeita cachaça.

Pronta para deixar de ser ideia, convêm à cachaça, mais uma vez, aguardar. Bebida tanto paciente, quanto sagaz, ela já soprou àquele que lhe trará ao mundo qual cana melhor acomoda seu espírito. Ano, ano e meio de evolução para ver o solo aos poucos dar lugar às folhas verdes e finas que, como espadas, cortam o vento que lhes afronta. Há, também, os que enxerguem no canavial formado um corpo de baile se exibindo em evoluções sensuais provocadas pelo vento sem-vergonha. Certo mesmo é que a pinga-ideia toma conta do olhar de quem a carrega em gestação e transforma em poesia até o mais sem-graça dos talhões do campo. É preciso ter qualquer coisa de lírico para que a tardança seja aprazível, estratégia de quem sabe que a virtude da espera não se manifesta sem a companhia da satisfação.

Cana deitada, moída, preparada. Trabalho duro, seja com sol a pino ou com chão encharcado das águas. É assim: — vez por outra a espera dá lugar à urgência -. A pinga também é sábia e presta reverências aos prazos rigorosos e inflexíveis da natureza. Caldo pronto, ao seu prazo, vem o controverso, polêmico, mas fundamental fermento. Quando carregado de significados, guarda os mistérios da tradição e quando desnudado pela curiosidade humana, enaltece a ciência. Indiferente se induzido pela intenção mística ou pela razão científica, é nadando naquele caldo doce que a mais perfeita das cachaças vai tomando forma. Por fim, aquela, até então, pinga-ideia começa a recrutar naquele universo microscópico o batalhão que vai conformar aroma, paladar e trazer à existência a mais-perfeita-das-cachaças.

É tempo da metamorfose. Tudo foi rigorosamente feito e preparado para deixar a vida agir em seus prazos. Não há muito o que ser feito pelas mãos que conduzem a nossa branquinha dileta. Agora, sempre alerta aos instintos e aos sentidos que emanam de dentro, é acompanhar, controlar e, com alegria, aguardar. Ali, nas dornas, a pinga vai deixando à vontade dos microscópios trabalhadores preencherem as lacunas da ideia e aos poucos as aspirações vão criando formas e, num intenso e incessante trabalho, novas ligações se fazem, gases vão embora e, silenciosamente, como se fosse magia (e há quem afirme que é) o doce transmuta-se em azedo, o açúcar em álcool.

Trabalho (literalmente) fervoroso, sutilmente orquestrado por uma pinga ideal que já se manifesta há tempos em ideias, lembranças e afetos muitos, mas, só agora se sente forte e confortável para surgir. Ao fim desse trabalho de pouco mais uma dezena de horas, já há uma personalidade formada que precisa se libertar. É no calor brando das brasas, carinhosa e calmamente acompanhado por olhares e atitudes maternas (à despeito do gênero da espécie), que um tipo de intenção se liberta em forma de vapores e percorrendo caminho entre a panela e a serpentina se condensa.

Aos mais afobados, o que verte do alambique cachaça já é. Aos bons apreciadores, quase. Lembrem-se: bebida de esperas. Depois desse vigoroso esforço a bebida cheia de intenções que ser formou precisa descanso. Se for descanso breve, contado em dias às dezenas, traz pinga virgem com lembranças frescas do campo em que se formou ainda ideia. Se for longo repouso, a pinga se transforma. Ela se torna experiente e maliciosa sem nunca ter experimentado o mundo. Sutilmente, ela extrai das madeiras que a acolhe suas melhores qualidades. A transparência que denunciava suas origens e marcas de personalidade, dá lugar a cores que vão do delicado palha ao soberbo caramelo avermelhado. Os aromas e sabores colecionados pelas histórias daquelas paredes de madeira vão se incorporando aos sofisticados e forte aromas originais da cachaça. O tempo vai transformando nossa branquinha dileta em bebida que, talvez, nem a mais criativa das mentes ousou conceber. E como é bebida forjada na tardança, o repouso a mantém pujante, cheia de energia e desejo de apresentar-se ao mundo.

Mas a cachaça depois de pronta, traz um ar de decepção. Uma decepção de quem a gestou. É que, como qualquer materialização ela é, muito de longe, a pinga perfeita que se manifestou em ideia. Os prazos nossos não dão conta de toda a perfeição que somos capazes de projetar, mas, ainda assim é uma cachaça carregada de intenções poéticas, prestes a se transformar uma profunda experiência sensorial e afetiva. E esse fiapo de desapontamento é fôlego para uma nova aventura.

Por fim, depois de uma jornada carregada de esperas afetivas, repousos amorosos e descansos místicos elas estão ali, fáceis, à altura dos seus olhos. Agora, pouco tempo os separam. Basicamente dois tempos, ambos de escolha. Um de prateleira, resolvido com um fácil percorrer de salão. O outro de ocasião, a melhor para sacar a tampa do gargalo e vertê-la num copo (apesar de que eu tenho preferido uma taça). Esse tempo seu, seja, talvez, o divisor de águas. Existirá uma cachaça antes e outra depois de você.

À sua saúde…

Cachaça!

Por Alfredo Luiz Miranda – Gastrofelicidade
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