A incompletude da cachaça nos entrega o vasto mundo das possibilidades.
Aos que esperam uma cachaça sem álcool, já fica o aviso, “ água vem do ribeirão”. Forte, marcante tanto na boca quanto na cabeça, o etanol é, em certa medida, o espírito da bebida. Acostumado a levar a culpa pelos excessos alheios, ele é um elemento que te conduz a experiências muito mais ricas do que simplesmente definir o quão valente você é, ou econômica pode ser sua diversão. Essas são só, vamos dizer, ponderações sociais. Há, também, o fator biológico que mexe com a gente, relaxa, nos deixa menos sensíveis às travas sociais e, por vezes, até nos deixa mais à vontade com nós mesmos. E ainda, tem as interações químicas, fundamentais nas experiências sensoriais, pois, diferentes graduações alcoólicas vão despertar diferentes estímulos em nossos sentidos e conduzir-nos por trilhas muito distintas e inéditas. Sem álcool, sobra quase nada para instigar a língua, ou para guiar aromas para dentro.
Esse componente que personifica nossa branquinha e, por sua potência entorpecente, a torna cobiçada e festejada entre os mais jovens ou menos experientes, é, sim, substância nobre, dada a trabalhos mais delicados, quase sempre encobertos pela pujança que também lhe entrega fama-primeira. É aí, para os iniciantes nos caminhos das experiências sensoriais, que se instala o paradoxo do álcool. Pois, imaginem, num primeiro olhar a conta é essa:
Quanto mais alcoólica for a pinga, mais sensações
ela pode desprender;
quanto a mais sensações somos expostos, mais envolvidos com a experiência da
cachaça precisamos estar;
quanto mais envolvidos, mais nossos sentidos são requisitados;
quanto mais requisitados são os sentidos, menos álcool deve estar presente,
amortecendo “as ideias.”
Aparentemente a conta não fecha.
Mas paradoxos estão atrelados à razão, ou à falta dela. E cachaça não é razão. Cachaça é puro afeto. Toda a matemática da pinga só da conta de explicar de onde ela vem e nunca prever para onde ela vai. É que depois de pronta, esperando para cumprir sua sina “goela a baixo” a cachaça ainda não existe por completo e tampouco sabe a que veio. Como em qualquer relação de afeto, ela só se completa quando há a intenção do outro. E no caso, da cachaça, o outro, somos nós, bons bebedores. Somos nós, ao olhar para ela, que dizemos “eis a cachaça” e ela desavergonhadamente aceita seu desígnio.
A partir do momento em que entregamos nossos sentidos ao sussurro da cachaça cultural tem início um delicioso jogo de aproximação entre nós e a pinga. Ali, na garrafa, ela é só matéria. Água, álcool, e elementos químicos outros que a tornam um líquido, ora sagrado, ora mundano. Mas, é no espaço das nossas expectativas que a pinga começa a se formar. Inebriado por essa névoa da pinga-mística, somos tomados de uma certa ansiedade, coisa de criança ao rasgar a embalagem de presente ou de jovens à centímetros do tão batalhado beijo. São nesses ínfimos momentos de espera que vamos relendo nossas memórias, ou melhor, vamos aprendendo a prestar a atenção nas pequenas faltas que constroem nossos desejos e nosso mundo ideal.
Nesse tempo mágico da “pinguexperiência”, que corre entre o veloz verter do gargalo ao copo e o lento escorrer das lágrimas pelas bordas ( sim, cachaça de verdade chora no copo, mas é de felicidade, creio) sentimos os primeiros perfumes que ela lança para nos seduzir. Ela sabe que é incompleta. Quer uma identidade. Somos nós, então, conduzidos por esses aromas, a desvendar nossos afetos em busca das completudes que a pinga nos exige. Divertidamente, apurando o sentido e nos entendendo com nossos afetos, vamos construindo uma cachaça-poema, metade álcool, metade inspiração. Talvez nem tenhamos nos dados conta, mas já estamos em profunda comunhão com a cachaça-cultural, comprometidos em dar sentido ao gole que em seguida virá.
É no gole que o ciclo se fecha e nossas inquietações são completa, porém, momentaneamente aplacadas. O sabor que domina a boca, pouco tem a ver com o sabor que preenche nossos devaneios. Eles são pistas que aquela branquinha dileta graciosamente insinuou para guiar um novo caminho, pois, essa é sua natureza — deixar pegadas levemente marcadas para serem preenchidas por nossas expectativas, para, como na praia, logo em seguida vir uma onda avassaladora e apaga as pistas, para começar nova trilha. A pinga é de origem de amorosa, carinhosamente gestada para ser do mundo, para ser do outro. Cachaça não nasce para ser prisioneira de uma ideia única. Ela vem ao mundo carregada de possibilidades, tantas quantas couberem no espaço entre a mesa e boca.
Portanto, para a pinga, ser quase é poder ser tudo, em qualquer tempo. É ser livre e sem amarras para ser desejos e mundos muitos, a cada novo gole. Essa liberdade que damos à pinga é retribuída com um universo de sabores e aromas que vão, ainda que por instantes, nos libertar da nossa condição humana de finitude e nos entregar ao infinito do tempo afetivo. Por fim, somos tão cachaça quanto a própria cachaça, pois, a incompletude dela nasce do nosso desejo de ser completo a todo momento.
Ah, sim! Quanto à razão matemática do álcool e dos sabores, não se preocupe, ponha na conta da poesia. Leia a cachaça com os olhos do coração, lentamente, sem pudores, receios ou preconceitos, e deixe-a te surpreender com suas melhores memórias e afetos.
À sua saúde…
Cachaça!
Por Alfredo Luiz Miranda – Gastrofelicidade
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