Ir a um bar para compartilhar ideias e inquietações com amigos é sempre algo alentador. E quando a decisão de “vamos ao bar” ou “vou ao bar” é tomada, a escolha de seu perfil também é sempre muito importante.
A localização, a bebida, a comida, o cardápio, a carta de cachaças, cervejas ou vinhos, os drinks, os copos, os vasilhames, a música, os frequentadores, as frequentadoras, a iluminação, a decoração, a dinâmica interior e no entorno, a acústica, a qualidade dos banheiros, a limpeza e higiene, o atendimento, a simpatia dos garçons, os preços, o conforto das cadeiras, as mesas ao ar livre ou não, um balcão com aquela banqueta alta, especialmente para quando vamos sozinhos, a informalidade ou formalidade, a simplicidade ou o requinte. Enfim, o ambiente no seu todo que estabelece uma conexão direta com nossa alma e desejos.
Desejos esses que remetem sempre a uma demanda, coletiva ou individual. A lista pode ser longa, proporcional à generosidade típica do ambiente de bar, como discorre o saudoso jornalista Nirlando Beirão, em 1986 (Encarte Play Boy Bar). Avaliar melhor um projeto ou uma ideia; conversar sobre tudo, descontraidamente e sem cobranças; Fechar um negócio; estreitar um relacionamento, comercial ou afetivo. O ambiente de um bar tende a ser sempre acolhedor e acolhedor e muito produtivo.
O Nélson Dantas, amigo dos bons e cabeça pensante atuante, que na vida profissional se dedica à engenharia de trânsito e à mobilidade social; e nos momentos de militância, à causa ferroviária e das energias renováveis, sempre mencionava, com tom aprovador e dignificante, os “bares com alma”. Lá comigo, eu imaginava que se tratava de bares vivos, dinâmicos e altivos, algo bom, claro. Mas, um dia perguntei a ele: Nélson, o que é um “bar com alma”. Ele com muita naturalidade, imediatamente me respondeu: “é um bar onde o cliente nunca tem razão”.
Realmente esses bares existem e são raros. Estão fortemente vinculados à personalidade do dono, que tem uma história e uma trajetória regrada a um padrão de honestidade e comportamento rígido na atividade. Faz o seu trabalho com afinco e dedicação e o entrega com rigor. Gostou, ótimo, volte sempre. Não gostou, ótimo, não volte, pois o padrão é esse e não vai mudar. É a conexão direta dos valores daquele ambiente com algumas almas, como a do Nélson, que têm sinapses para captar, entender, compreender e valorizar os serviços orientandos por aquela trajetória, riquíssima em elementos pouco tangíveis para um cidadão menos atento. E outra peculiaridade interessante é que não são hereditários, ou seja, os clientes tendem a não respeitar ou admirar da mesma forma os filhos, que eventualmente trabalhem no bar.
Um outro engenheiro, Rogério Sepúlveda, também amigo dos bons e cabeça pensante e atuante, que na vida profissional se dedica ao saneamento básico; e nos momentos de militância à causa ambiental. Rogério dizia apreciar aqueles bares chamados “de bairro” que tinham cada um deles sua alma moldada ao longo dos anos e por seus frequentadores. Não só por seu dono, mas juntamente com os clientes. Ainda acrescentava que os bares que mais lhe chamavam a atenção na categoria “de bairro” eram aqueles de esquina, com portas de correr dando para as duas ruas, com balcão e prateleiras cheias de garrafas.
Uma das melhores definições já sistematizadas, que conheço, de “Bares que pensam” foi escrita pelo jornalista Nirlando Beirão, no encarte Play Boy Bar número 159-A, da Revista Play Boy (1986), por meio do artigo: “Sonhos, casos, lendas e mistérios do bar, doce bar”. Ele aborda de forma muito agradável o espírito de generosidade e as várias peculiaridades da produtiva sociabilidade em um ambiente de bar. Inclusive que o bar não é o segundo lar, é algo mais pontual, porém muito relevante.
Esse encarte circulou na Revista Play Boy durante a década de 80; e se dedicou a reportagens que aprofundou uma das constatações do poeta Vinicius de Morais: “Nunca vi uma amizade ser feita na leiteria”. Eram relatos à luz de um ambiente de bar, envolvendo: histórias, tomadas de decisões, gastronomia, drinks, decorações, conquistas, brigas, desabafos, negócios, articulações políticas, sonhos… E tudo sobre a lógica de um requinte muito refinado. Talvez, sob a ótica daqueles que gostam do popular, esse seja o único senão do glorioso e maravilhoso encarte.
O Artista Plástico Paulo Apgáua, advogado de formação, mas profissionalmente dedicado às artes, também é um amigo dos bons e que tem opinião formada sobre o conceito de Bares que pensam. “São aqueles que atraem a intelectualidade”. E lembra, lamentando, que muitos desses tradicionais bares estão sucumbindo, inclusive na icônica Paris, devido aos altos custos de aluguéis, entre outros fatores. Aliás, em Paris o filósofo Marc Sautet teve a incrível iniciativa de ensinar filosofia nos cafés e bares. Trabalho esse, disponibilizado no Brasil pela Editora Saraiva: Um Café para Sócrates. Um livro que é um louvor aos Bares que pensam.
Autores como Autran Dourado, Luis Fernando Veríssimo, Luis Vilela e muitos outros escreveram sobre acontecimentos nos bares, discorrendo “sobre nossas identidades mais íntimas” no livro “Contos para ler no bar”, da Editora Record, 2007. Outro louvor aos Bares que pensam.
O saudoso mestre Ítalo Mudado, falecido em 2011, gostava de bares populares que permitiam o diálogo. Professor aposentado de literatura portuguesa da UFMG, tinha o teatro amador como sua motivação maior. Dedicava-se com incrível naturalidade e entusiasmo aos autores gregos, com montagens de peças de Eurípedes e Sóflocles. Fernando Pessoas, Guimarães Rosa, Luiz Vilela, Martim Pena, Machado de Assis eram também parte de seu repertório teatral. Boa prosa com fluidez, naturalidade, bondade e muita simplicidade. Seu bar predileto era o Banzai, um bar escancaradamente popular, no centro de BH, na Avenida Augusto de Lima com ruas São Paulo e Padre Belchior. Ítalo dizia que gostava dele principalmente pela pluralidade e diversidade de pessoas que ali circulavam.
O Banzai continua o mesmo em relação àquele frequentado por Ítalo Mudado nas décadas de 80 e 90, embora já tenha mudado de dono e de gestores algumas vezes. Cerveja gelada, preços justos, atendimento bom e tudo muito popular. A característica marcante é se misturar com a rua, sem barreiras, o que agrada decisivamente ao povão; ao contrário dos requintados, que têm fronteiras claras separando-os e distinguindo-os das ruas.
Enfim, dos populares aos requintados, há os que que pensam, que têm consistência e não são descartáveis, apenas da moda. Algumas características essenciais desses, creio que podemos citar: a) boa música, ou nenhuma música; mas jamais tem, em nenhuma circunstância, aquelas descartáveis e rasas; b) bom atendimento, com garçons simpáticos e profissionais; c) decoração com elementos significativos; d) limpeza e higiene; e) ambiente adequado ao diálogo e à troca de ideias; f) sempre repleto de alentadoras surpresas para quem pensa.
Fernando A. Leite, gestor da Roda de Ideias.