Crônica de um sábado a tarde
Fotos por Gastrofelicidade
Ali, naquele lugar em que paira o Espírito Cultural da Cachaça a prosa começava a desenrolar. Sobre algumas mesas estavam um bom número de garrafas, todas ainda carregadas de expectativas. Moldadas à suas formas, umas mais esguias, outras em curvas mais proeminentes, as cachaças exibiam coloridos diversos que iam do cristalino a um tom acentuadamente caramelo. A luz do sol que entrava timidamente por frestas do telhado, ora transpassava um litro deixando a cor de ouro mais evidente, ora beliscava a beiradinha de outro presenteando com brilho de diamante a mesa posta.
Mas, prosa cachaceira corre azeitada; e, às doses, essas branquinhas diletas cheias de virtudes, rapidamente assumem vida nova deixando para trás cores e formas, ganhando sabores e perfumes. São pequenas pistas, degustações únicas que nos levam ao vislumbre de um universo rico, potente e complexo. É assim que as cachaças cumprem sua sina. E, à medida que mundo das sensações vai ganhando intensidade, sobra garrafa.
Só que garrafa de cachaça nunca, nunca, fica vazia. Sai a pinga, chega a história. Vêm as memórias, vêm as confidências, vêm os pequenos segredos e os sutis deslizes, vêm os sonhos. Tudo tempero de prosa, tudo experiência de afetos.
Desse dia de prosa boa, enchi uma garrafa todinha com memórias de um herói de verdade; desses que, no anonimato, entende que proteger a vida do companheiro em campo de batalha é honra, mas, que bravura é doar e doar-se aos desconhecidos, aos famintos, aos desamparados.
Nessa garrafa, coube ainda pedaços bem pequeninhos de uma história enorme, que viajou no tempo, que voltou às chagas da Guerra Mundial, que aportou em terras nipônicas, que despertou reflexões, que desvendou ritos, que trouxe 1000 singelas ações de fé e esperança. Essa é uma história que vai ser contada por uma garrafa especial, por uma cachaça não menos especial, gestada a partir da gentileza e da gratidão e materializada pela sensibilidade de um mestre na alquimia dos aromas e sabores.
Tantas garrafas, tantas histórias. Ainda ouvi uma outra, de cachaça que nasceu do amor do pai pela filha e pelo filho de coração, que tramou secretamente, porém com carinho, a permanência deles ao seu lado. Uma história de virada de vida, de encontros e desacertos. Essa, um dia abro a garrafa e conto em detalhes.
Houveram, claro, estórias que o código do bom cachaceiro me proíbe de publicar; essas, são, de longe, as mais sinceras e inesquecíveis, mas, aí, meus caros amigos, sabê-las, só quem esteve, viu, e jura de pé-junto que nunca aconteceu; pois, a garrafa em que ela foi parar, foi ao chão, mas, como não quebrou, está guardada em destino incerto.
Desse dia de prosa boa, enchi uma garrafa todinha com memórias de um herói de verdade; desses que, no anonimato, entende que proteger a vida do companheiro em campo de batalha é honra, mas, que bravura é doar e doar-se aos desconhecidos, aos famintos, aos desamparados.
À sua saúde, Cachaça!
Texto por Alfredo Luiz Miranda – Gastrofelicidade
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