Ou 6 dicas para beber cachaça com mais felicidade
Fotos por Gastrofelicidade
Falo com conhecimento de causa. Álcool de mais na cabeça dá amnésia e outras coisas que nem lembro. Nem é porque não confio no afrouxar das minhas fronteiras formais. Não, esse nem é o problema. Aliás, é até bom para minha saúde mental uma eventual “baixa no desconfiômetro”. Agora…Os lapsos de memória, esses me matam. Na manhã seguinte, em meio a uma ressaca, ter que ir costurando os retalhos de lembranças, cavando pistas frágeis do que comi, com quem falei, que trajeto tomei no dia anterior, sem a menor noção de como (ou se) isso me afetou emocionalmente, é horrível. Essa minha desconexão com o mundo, como um piloto automático que apenas me mantém vivo (ou quase isso), me incomoda tanto quanto a sensação de ausência de mim pela qual sou tomado no dia seguinte ao porre. Sinto que o entorpecer me torna frágil.
Dessa situação, tenho me afastado cada vez mais. Talvez seja o despontar da tão famosa experiência, fruto da boa quantidade translações que já presenciei, somado ao desejo de ver a Terra completar essa corrida por um período maior do que eu já vivi. Tenho trocado, com muita satisfação, a breve euforia por uma relação mais íntima e duradoura comigo, e é a cachaça que tem sido minha companheira nessa nova jornada de satisfações.
Em princípio parece dissonante. E é. Pelo menos no senso-comum. Dificilmente, no nosso imaginário coletivo, cachaça e felicidade se encontram além dos domínios dos excessos. Nesse reinado, alegria vira algazarra, confraternização se transforma em confusão. Mas, para mim, a cachaça tem se tornado uma experiência de intensa comunhão comigo mesmo e com o mundo. Aos poucos tenho percebido o álcool desaparecer e a força da herança cultural da pinga florescer.
À medida que minha ancestralidade fala mais alto pelos gargalos das garrafas, beber a Cachaça (assim mesmo um artigo definido e com letra maiúscula) tem se tornado um exercício duplo. O primeiro de enxergar o mundo por outros prismas, tentando, sobretudo, valorizar pessoas, ressignificar costumes e desconstruir preconceitos. O segundo é me enxergar, valorizar minhas percepções e minhas conexões com o mundo, apurar meu paladar e meu olfato e criar mais pontes entre sensações e afetos.
Tem sido uma diversão. Mas também é um exercício de disciplina e respeito. Quero falar muito mais sobre isso, mas para não ficar longo, por enquanto vou só pontuar meu ritual frente às minhas branquinhas diletas.
1- Primeiro e antes de tudo:
Não é qualquer cachaça que se presta às experiências de encontros. Para desvendar os segredos que compõe a cachaça é preciso que ela tenha sido concebida com tradição, respeito, afeto. Portanto, é preciso ir em busca dessas preciosidades. Faço isso conhecendo e reconhecendo quem ouve um certo sussurro encantado que paira em todo alambique (um Salve aos mestres alambiqueiros. Respeito-os). Você vai ficar surpreso com a quantidade de cachaça esperando por serem desvendadas.
2- Conhecer a cachaça como manifestação cultural.
Tenho buscado entender que aquela pinga que está prestes a virar experiência, carrega um DNA cultural tão antigo e diverso quanto nossas raízes. Faz sentido perceber que aquele líquido é uma espécie de vetor (no sentido biológico) que carrega toda a sorte de sentimentos, dos mais puros aos mais escusos, filtrados pelo tempo, pela tradição e pelos valores de todas as pessoas que de alguma forma a contribuíram para a conceber aquela pinga. Isso é abrir-se ao inesperado.
3- Despir-se de preconceitos.
Empenho me na tarefa de encarar aquela dose de branquinha, seu aroma peculiar e seu sabor primário, com o mínimo de impacto possível dos conceitos pejorativos que rondam nosso imaginário. Difícil missão, pois, esse preconceito faz parte da construção cultural da cachaça e saber distingui-lo e coloca-lo em seu lugar é uma tarefa de amadurecimento.
4- Buscar em sua mente repertório de aromas e sabores.
Para mim, o mais desafiador e divertido dos exercícios. Perceber o que a Cachaça te diz, o que ela te lembra, o que você já experimentou ou experienciou. Requer um autoconhecimento incrível. Tem sido um momento de descobertas sobre mim. E também uma desculpa para enveredar por novos pratos, sabores e emoções.
5- Ter disciplina e ouvir suas memórias.
Buscar em você os afetos e emoções que nossos sentidos disparam. Os aromas de infância, os sabores dos domingos em família, sensações do primeiro beijo, das decepções.
6- Estar aberto a trocas e às aprendizagens.
Suas sensações, impressões e afetos são suas e ninguém pode tirá-las de você. Mas, também as impressões dos outros são as verdades deles. Esse exercício de dialética requer respeito e empatia. Saber ouvir sem a arrogante presunção da verdade absoluta ou dos dogmas é descobrir outras experiências possíveis.
Assim, a Cachaça tem se tornado para mim um lugar de celebração à vida, de reverência à cultura e, principalmente de ressignificação de valores. A cada gole descubro na nossa branquinha dileta, no emaranhado de sua sofisticação sensorial, fortes cores poéticas, capazes de transformar a degustação num rito que exalta todo o poder criativo da humanidade, relegando ao plano da mera mortalidade a euforia do álcool. Por fim, a cachaça tem se tornado uma pausa no espaço/tempo para meus melhores encontros com amigos de todas as épocas (estejam eles entre nós ou não), uma nova janela que se abre para o mundo natural e sua relação com as culturas da humanidade e uma ponte (ainda uma singela pinguelinha) que liga minha consciência e meus afetos.
Aos que como eu apreciam a Cachaça por sua complexidade sensorial, deixo o convite para as experiências transformadoras que a pinga esconde.
À sua Saúde…
Cachaça!
Por Alfredo Luiz Miranda – Gastrofelicidade
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