Antes de bebe-la, no espaço vago do “vir a ser”, a cachaça é poesia.

Às vezes cedo ao pequeno prazer de me encantar com as garrafas de cachaça. Escolho passear por uma ou outra loja com prateleiras abarrotadas delas. Gosto do programa. Tamanhos muitos, cores variadas. Algumas opacas, por sagaz sensualidade, escondem a pinga, outras explicitamente transparentes, exibem sem pudor o líquido cor de prata, de palha, de ouro. Formatos tantos. Todas lindas. Aliás, algumas nem tanto (sejamos realistas), mas igualmente instigantes pela experiência que prometem. Me aproximo e leio rótulos. Nome, procedência, se armazenada, se envelhecida (sim, há diferença). Olho carinhosamente mais detalhes, impressão, vedação e lacres (caprichos que, sutilmente, marcam o longo caminho do processo de produção), afinal, tanto o diabo mora nos detalhes, quanto os milagres acontecem quando não estamos vendo. Se o primeiro olhar me comove, quero saber também qual madeira cedeu à sexy provocação da cachaça entregando-lhe lentamente perfume e cor.

Esse passeio aparentemente despretensioso pelas prateleiras, nada tem de inocente. O flerte com os rótulos vai criando um universo quase lírico, carregado de insinuações e expectativas. À medida que o olhar fixa a atenção num exemplar e a mente se desprende das amarras do real, começa uma jornada fantástica por um caminho de desejos projetados. É hora de deixar a imaginação romper a barreira do bom-comportamento e começar e desenhar o encontro perfeito entre a boca e o que a garrafa sugere esconder.

Ali, em público, no meio de todo mundo, despudoradamente se estabelece uma sensual troca de insinuações. Dá-se início a uma quente e silenciosa batalha da qual o vencedor sempre será aquele que primeiro for subjugado pelos seus próprios desejos e aceitar deitar-se em festa com seu oponente. Já não é mais só um passeio. Em algum instante entre o real e o lírico a cachaça cultural nos deixou sensível à mística poética da pinga.

Olhar as garrafas, então, torna-se parte de uma deliciosa aventura em busca de uma completude idealizada. De um lado, a cachaça, pronta e ansiando por ser preenchida de sentidos e emoções, do outro lado a gente — um universo vivo, repleto de histórias e pulsando afetos prestes a ser despertado ao melhor sinal de vida. Ao nos encontrarmos a magia se faz fundando um único e irrepetível instante infinito.

Antes de bebe-la, nesse espaço vago do “vir a ser”, da intenção, cachaça é poesia. Bem dizer, cachaça nasce poesia e só começa a virar “a-de-beber” depois que a cortejamos, depois que a desejamos, depois que a idealizamos musa. Até então ela, como um poema, é pura vontade de ser. Mas essa incompletude poética da cachaça não é falta, pelo contrário, é abundância. Por não ter sentido fechado, estamos nós, bons e apaixonados bebedores, livres para emprestar nossos sentidos e sentimentos sem limites nem censuras, por incontáveis vezes, transformando-a, a cada investida, na nossa mais íntima e inédita cachaça, afinal, nunca somos a mesma pessoa, nem nunca a cachaça é a mesma poesia.

Mário Quinta, poeta dos bons, disse certa vez que “um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente… e não a gente a ele!”. E, via-de-regra, sou tomado por essa impressão com certas pingas. Parece que elas me bebem, e não eu a elas. Essa impressão, de que elas me desnudam é porque, imagino, elas estão abastadas de mim, das minhas mais profundas emoções, de vergonhas inconfessáveis e ausências assimiladas. De certa forma, sou eu ali, entre o perfume da canela e a lembrança de uma certa cristaleira da casa da minha avó. Lembranças.

A cachaça em seu estado de poesia pura quase nos entrega o infinito, deixando-o ao vislumbre de um toque. Mas é exatamente ao primeiro toque dos aromas em nossas narinas, que nossos anseios se materializam, somos arremessados à completude dos sentidos e nossas memórias saõ ligadas a afetos, completando as referências de uma vida toda. Experimentamos, então, o êxtase, num espaço entre as experiências sensoriais e o vislumbre do infinito que se esvaiu.

Então meus amigos, celebremos o quase. Pois, é no quase que a pinga é poesia. Depois disso ela vira sentido, pura manifestação. Ganha ares de líquido culturalmente poderoso, que guarda séculos de conformação dos nossos costumes e a milenar herança civilizatória através dos tempos. Uma vez, completa, ela torna-se ícone, emana valores, fica impregnada de simbologias, de histórias. Transforma-se em totem imponente anunciando aos quatro-ventos que tem personalidade de um povo, que representa as muitas-mãos que desenharam os contornos dos rostos brasileiros. Tudo bem, é verdade inconteste e por isso também a festejamos. Mas, que não nos ouçam: na calada da noite, entre um gole e outro, naquelas confissões de arrancar rubores, no desejo, antes de ser completa, a cachaça é só nossa. Nossa íntima e inestimável e poética confidente.

À Sua saúde…

Cachaça!

Por Alfredo Luiz Miranda – Gastrofelicidade
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