Propus ao presidente, e foi aceito, que, nos jantares (banquetes) às autoridades internacionais que visitassem o país, o brinde fosse levantado com um pequeno cálice de cachaça, em substituição ao champanhe.
Desde criança, no interior de Minas, observava com interesse que as pessoas mais pobres do lugar tomavam goles de cachaça, a “caninha”, e jogavam para trás uma pequena porção, que as diziam ser a dose do “santo”. Fato mais interessante é que os “importantes” do lugar não tomavam a cachaça em público. Todos sabiam que eles tomavam e muitas vezes saboreavam a também chamada “tomba-homem”. Isto no que se referia aos homens, porque as mulheres não se aceitava que usassem quaisquer bebidas alcoólicas. A uma mulher não se oferecia qualquer bebida alcoólica àquela época.
Chamar uma pessoa de cachaceira era mais grave do que ofendê-la com o “nome da mãe”. À medida que me tornei jovem, frequentando o ginásio e a universidade, em Belo Horizonte, observei que as pessoas tomavam cerveja, licores, inclusive as mulheres, mas em hipótese nenhuma a cachaça penetrava nas reuniões sociais.
Meu avô gostava de uma pinga, mas tinha, constantemente, a sua atenção chamada para que não tomasse a cachacinha em público. Aos críticos ele dizia: “Você toma escondido e fica chato em público”. Este fato me ficou retido fortemente na memória. À medida que o tempo foi passando, ampliou-se o número de bebidas alcoólicas servidas em festas, jantares e todo o tipo de encontros sociais. O uso da cerveja ampliou-se grandemente entre homens e mulheres. As pessoas convidavam os amigos: “vamos tomar uma cerveja”. Vieram depois o chope, os vinhos brancos e tintos nacionais e estrangeiros. O uísque servido nas reuniões mais chiques, nos grandes jantares, especialmente para figuras políticas que visitavam o país. Se levantam os brindes com uma taça de champanhe, a célebre bebida famosa da França. Nossa cachacinha continuava discriminada e humilhada.
Os brasileiros em geral, não levam em consideração o ponto de vista cultural dos setores materiais, como as comidas, bebidas, tipos de vestimentas, além dos vários setores físicos de cultura. Apareceu a “caipivodca” a base de vodca russa, logo em seguida a caipirinha, à base de cachaça mineira e brasileira. Não critico o aparecimento desta bebida e sua ampla comercialização. É um direito que as pessoas têm de lançar seus produtos e comercializá-los. O que eu quero destacar é a fragilidade do espírito cívico no Brasil, em seus vários setores de atividade, incluindo por exemplo, a própria execução do hino nacional brasileiro e dos belíssimos hinos pátrios, como por exemplo, o hino à Bandeira, que era reproduzido nas páginas dos cadernos escolares.
Como os leitores sabem, creio eu, eleito reitor da UFMG e ao terminar o mandato, fui contratado como professor visitante da Universidade de Londres por dois anos. Quando me preparava para voltar ao país, fui aposentado, compulsoriamente, pelo AI5 e não pude voltar ao Brasil. Permaneci 17 anos no exterior, colaborando na criação e desenvolvimento de universidades, centros de estudos, de pesquisa e de serviços à comunidade. Pude conhecer bem de perto a cultura, do ponto de vista antropológico, isto é, desde o processo de nascer das crianças e seu desenvolvimento, a alimentação, as bebidas, os contatos sociais, as apresentações artísticas na Europa em geral, nos Estados Unidos e Canadá, em toda a América Latina e Caribe, na China, Índia e Japão, países onde trabalhei por prazos mais amplos ou mais curtos, mas estive sempre muito preocupado em conhecer as importantes características culturais dos países, incluindo os hábitos alimentares que fazem parte da cultura. Assim pude observar, claramente, no que se refere às bebidas, o orgulho do Reino Unido, especialmente a Escócia com o uísque. A vodca na Rússia, o champanhe na França, que constitui o orgulho do país. Pude perceber o orgulho do japonês com o saquê.
No caso da América Latina pude presenciar a luta entre o Chile e o Peru para defenderem a propriedade cultural do “pisco-sauer”, produzido com pisco e preparado de maneira semelhante à caipirinha brasileira.
Quando voltei ao Brasil, preocupei-me em observar e destacar símbolos nacionais, como os hinos pátrios, as comidas típicas do Brasil e seus estados de origem, as bebidas, as apresentações artísticas. Nomeado ministro da Cultura visitei todo o país e discuti com artistas e lideranças populares e universidades sobre o que deveríamos acrescentar como símbolos nacionais, ao lado das obras de arte que nos enriquecem.
Destaquei logo e propus que, em matéria de bebida, fosse destacada a cachaça. Em matéria de comida a broa de milho e o pão de queijo. Em matéria de apresentação artística, as bandas de música e seus dobrados. Em matéria de geografia, a Serra da Barriga, no estado de Alagoas e no pico a Zumbi dos Palmares. Propus ao presidente, e foi aceito, que, nos jantares (banquetes) às autoridades internacionais que visitassem o país, o brinde fosse levantado com um pequeno cálice de cachaça, em substituição ao champanhe. Isso foi adotado durante algumas vezes, durante o governo Sarney, quando fui ministro da Cultura, e também no governo Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A partir daí, a cachacinha cresceu e ocupou posição de destaque em níveis nacional e internacional.
Aluísio Pimenta, Professor e membro da Academia Mineira de Letras.
Texto originalmente publicado em: Diário da Tarde, Caderno Opinião, Página 12; 02/12/2006